Nunca Tivemos Fome

Quando eu tinha quatro anos minha mãe me deu uma notícia,
disse-me que esperava outra criança,
que seria meu irmão.

Ah, eu dormi e acordei por dias com um sorriso alegre no rosto,
mal podia esperar que os meses, que ela dizia que ele ainda demoraria passassem,
os dias, se passavam como minutos,

Em meio a isso eu via uma certa angustia no olhar dela,
meu pai e minha mãe são o antônimo um do outro,
ela a proximidade de assistência. ele uma distância próxima, incongruência.

Minha mãe teve mãe,
não tinha pai, ele a abortou junto com suas irmãs,
àquela época mulher sem marido, sofria em dobro,
e minha mãe sofreu com sua mãe, irmãs.

Minha mãe carrega nas mãos os calos da menina que outrora foi,
que mal tinha forças para carregar um caderno e já levava no lombo o peso do filho dos outros,
da sinhá, ela escrava moderna, trabalhava para comer e pra morar!
a fome deserda.

Com meu pai não foi diferente,
tinha mãe e pai,
mas a fome também bateu-lhe à porta,
e o vinagre amenizava o gosto do feijão já perdido, mas não havia mais nada,
ouvia-se apenas o som do próprio estômago,
fome!
Escola não, trabalho!

Comecei a entender essa angústia de minha mãe,
ela tinha medo de que a fome se repetisse,
que seus filhos sentissem o gosto das bananas pegas no quintal do vizinho e cozidas com sal para espantar a fome, que a barriga cheia d'água já não conseguia amenizar.
ela tinha medo,
um medo legítimo,
um medo sinistro,
medo de que tudo se repetisse.

O casamento não ia bem,
num foi,
meu pai é daqueles que preferem quantidade,
qualidade, relegada!

Pois bem, voltemos à criança,
nasceu, e tinha uns pezinhos pálidos, puxou mamãe,
que contrastavam quando contra minha custis,
eu o espremia,
eu tinha certeza que um dia se eu o abraçasse forte o bastante de modo a não matá-lo,
ele poderia se incorpora ao meu ser,

Não foi preciso,
nossas almas sempre foram conectadas,
eu sempre soube o que ele era, e ele sempre foi tudo para mim.

O tempo passou,
o contraste se esvaiu,
ele tinha uma mente escura, feito Zumbi,
e iluminou nosso caminho...
nunca tivemos fome!

Dois empregos de minha mãe,
Dois empregos de meu pai,
Um para meu irmão mais velho,
Um para mim,
davam conta de comprar os livros que tanto queríamos,
desejávamos com todas as forças,
Tentativa de esquecer as ofensas, os insultos,
"macaca, neguinha, imunda..."
Os livros eram refúgio de todos nós,
não mais que o amor,

Ano que vem termino a faculdade!
Vou contrariar a profecia de minha professora, de que seria muito difícil para mim fazer uma faculdade, mesmo sendo a primeira da turma!

A angústia de minha mãe se transformou em ansiedade!
Sonho em Realidade!

Celly





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não Que Isso Seja Relevante.

Eu Pude Tocá-los!

A Curinga.